Os haitianos e brasileiros que tiveram as vidas transformadas pela missão de paz
2 de setembro de 2017
Haitianos e brasileiros e a missão de paz
Vanessa da Rocha
O Brasil já esteve em mais de 50 operações da Organização das Nações Unidas,
mas nenhuma foi tão duradoura como a Missão de Paz para Estabilização do
Haiti (Minustah), na qual encerrou a participação nesta semana.
Durante 13 anos, mais de 37 mil militares brasileiros estiveram no país para dar
assistência a cerca de 10 milhões de haitianos. Além da turbulência política,
ajudaram o país a enfrentar desastres naturais, como o terremoto de 2010 e
o furacão Matthew, no ano passado. Problemas, como acusações de envolvimento em
crimes, também ocorreram.
Milhares de pessoas tiveram as vidas transformadas nesse período. A BBC Brasil conta
a seguir algumas dessas histórias.
Brisson Fritznel, o haitiano que ganhou um futuro
Brisson nasceu em Cité Soleil. A população da região que, em francês, significa
"cidade do sol", sempre temia o entardecer. Durante a noite, sem eletricidade, a única
luz que se via por trás dos casebres de lata eram dos tiros e dos charutos de drogas.
Poderia ser parecido com as favelas brasileiras, se não fosse o fato de que ali está a
concentração das pessoas mais pobres do Hemisfério Ocidental. Ali, onde Brisson nasceu,
a fome é rotina, estudar é privilégio e ter um emprego é luxo. Esperto, ele se esquivou
das dificuldades de morar na vila que já recebeu o indesejado título de mais perigosa do
mundo. Também resistiu ao fato de viver em
um país que foi governado por uma sequência de ditadores, onde os motins eram diários.
Fritznel aprendeu português sozinho e trabalhou como intérprete da ONU |
Em 2004, quando o país estava no ápice da crise humanitária, a ONU enviou uma
missão de paz ao Haiti. Uma base militar foi instalada dentro de Cité Soleil. Brisson
acompanhou o desembarque dos militares brasileiros e sentiu que precisava aprender
português. Autodidata, observava o ritmo da fala, a composição das frases e
consultava o dicionário. Aprendeu. A ONU precisou de intérpretes e ele
foi selecionado.
Brisson, não! Jimmy. Jimmy gaúcho. A cada seis meses, o efetivo militar brasileiro
era substituído e o jovem intérprete aprendeu sobre a diversidade cultural do nosso país.
Ele decidiu então que seria gaúcho.
Naquela época, a seleção brasileira vivia um grande momento. O Brasil enviou ao
Haiti o time com estrelas como Ronaldo, Ronaldinho, Kaká e Cafu para fazer um
jogo da paz no país. Jimmy pirou. Viu o seu ídolo, Ronaldinho Gaúcho, de perto.
Foi inesquecível. A decisão de virar gaúcho já estava tomada.
Com a oportunidade que teve de ser intérprete da ONU, ele aproveitou para
estudar Comunicação e Direito. Ao contrário de todas as expectativas do lugar onde
nasceu, Jimmy ganhou um futuro.
Chenet Conserv, o haitiano que se manteve vivo
Haitiano decidiu mudar-se para o Brasil, onde reconstruiu sua vida. |
Conserv - Se o Haiti não tivesse mudado, eu estaria morto.
BBC Brasil - Por quê?
Conserv - Todo dia tinha revolta na rua. Teve uma vez que os bandidos me pegaram.
Eles me colocaram no chão pra me matar.
BBC Brasil - E você fez eles desistirem?
Conserv - Sim, foi por pouco. Só que depois piorou. Quando parou de ter tumulto
e ataque de gangue, teve o terremoto.
BBC Brasil - E aí você decidiu partir para o Brasil?
Conserv - Sim. No Haiti não tem emprego. Eu precisava fazer dinheiro para cuidar da minha filha.
BBC Brasil - Onde ela está?
Conserv - Ela continua em Saint Marc, junto com a mãe.
BBC Brasil - Quantos anos ela tem?
Conserv - Tem 10. Dia 31 de julho ela fez aniversário. Sempre mando presente.
BBC Brasil - Ela está bem?
Conserv - Sim, ela tá bem na escola, sem dificuldade. Só que ela diz que tá com muita saudade.
BBC Brasil - E você?
Conserv - Eu tô com saudade da minha filha. Todo dia peço força para eu seguir trabalhando e
poder dar um futuro pra ela. É por isso que tô aqui.
A esperança de Chenet de conseguir um emprego se despedaçou entre as ruínas do terremoto.
Sem dinheiro, sem teto e sem chão. Tudo havia sido destruído. O jeito era recomeçar.
Chenet juntou os destroços e traçou um plano: reconstruir a casa e tentar a vida em
outro lugar. Antes, ele descartara deixar a família por causa da violência do país.
Mas seis anos depois da implantação da missão de paz, os ânimos já não estavam
mais tão acirrados e a insegurança já não era mais o problema principal.
Enquanto o Brasil desembarcava no Haiti com mais um efetivo da missão,
Chenet seguia no sentido contrário. Desembarcava em Rio Branco. Chegou maltrapilho,
só sabia falar "meu nome ê Chenê" "po favou" e "obirigadu".
No Norte, se familiarizou com as dificuldades do povo. Mas ele sabia que o Brasil é grande
e por isso, embarcou em ônibus, trens e caronas em caminhões até parar em Porto Alegre.
Chenet não teve muita sorte no início.
Trabalhou duro numa obra e foi enganado no pagamento. Engoliu seco. Não tinha
documentos para
provar. Já na segunda oportunidade, se encontrou. Virou gari. A rotina de acordar às 5h,
pegar dois
ônibus, correr o dia inteiro atrás do caminhão de lixo e só chegar em casa às 22h tem
sido uma bênção para ele.
"Às vezes penso que Deus me deu muita sorte. Eu tenho um emprego e a minha família
tem o que comer. E, graças a Deus, estou vivo para garantir isso."
Militares, os brasileiros que ganharam lições de vida
No refeitório da sede do Batalhão de Infantaria de Força de Paz no Haiti, os horários
das refeições eram sagrados. Alguns militares faziam uma oração, outros agradeciam
em silêncio.
"Dar valor à comida no prato é uma das principais lições que a gente leva pra vida
depois da missão no Haiti", diz o tenente do Exército Paulo de Tarso, médico cirurgião
baiano, que integrou a missão em 2013.
Para o sargento carioca Adriano Vieira, a missão continuou viva depois que ele voltou ao
Brasil, em 2015. O trabalho de assistência para as crianças haitianas despertou a
vontade nele de fazer algo pelas crianças daqui.
"O Haiti não saiu de mim. Quando voltei para o Brasil decidi que a missão de paz
deveria continuar em minha vida. Criei um projeto que visita orfanatos e asilos dando
alegria e doações para quem precisa."
Quando os blindados passavam pelos vilarejos, as crianças colocavam a mão na
barriga para indicar que estavam com fome. Os militares não são autorizados pela
ONU a dar comida, mas muitos paravam para conversar e se comunicar com as crianças.
Álvaro Luis Carvalho Peres, tenente do Exército que esteve no Haiti duas vezes, diz que a
barreira do idioma era ultrapassada por um aceno de mão ou um olhar. "Eu pude
perceber que para um povo que mora em Cité Soleil e praticamente não tem nada,
o pouco que dávamos, até mesmo um gesto de carinho e atenção, já era muito para
arrancar um sorriso daquelas pessoas."
Mas ele salienta que a missão continua: "aqui no Brasil nós temos muitos Haitis".
BBC/UNPP
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